Fazia frio, naquela manhã. Saiu da cama para atender o telefone:
-Alô
-Tudo bom?
A voz lhe era familiar. Sentiu um medo intenso, ao ouvi-la. Resolveu se certificar.
-Quem fala?
-Aqui é o grande amor da sua vida. Tudo bom?
A voz estava certa. Era, de fato, o grande amor da sua vida. Esperou tanto, por essa voz.
-Estava, até agora.
-Uau. Acertou em cheio. Só um momento.
Silêncio.
-O quê foi isso?
-Tava aqui, tirando a faca que você cravou no meu peito.
-Tanta presunção, só podia ter vindo de você, mesmo...
A voz do outro lado, até o momento, tão contente, assumiu um tom sério:
-Ainda não me perdoou, né?
-Eu? Te perdoar? Por quê? Por sumir, de repente, não mandar notícias, e permitir, depois de semanas, que eu soubesse, pelos seus amigos, que você foi viajar com a ex?
-É, parece que não perdoou, mesmo.
-Sim, eu perdoei.
Mentira. A mais clara das mentiras. Uma mentira deslavada, como ela costumava dizer. Não gostava que soubessem que guardava mágoas. Sempre, desde que podia se lembrar, fingiu o perdão, a obediência, o sorriso. Fingia um controle que não existia. Gostava que a achassem superior. A quem? Nunca soube responder.
-A gente precisa falar sobre isso.
-Não, a gente não precisa falar sobre isso. Pra dizer a verdade, a gente não precisa falar sobre nada. Você fez o que fez, eu chorei, sofri, entendi, e, tava, até agora, tentando levar minha vida.
Sentiu que não devia ter pronunciado a última frase.
-E, agora...?
-E, agora, você me aparece, como se nada tivesse acontecido, fingindo que tá tudo bem, achando que a gente tem que resolver algo que eu já superei, e tô tentando enterrar!
Nesse momento, tentou acalmar o choro. Não que fosse difícil, mas, sentiu a garganta embargar. Não gostava de chorar, tampouco. Menos ainda que soubessem que estava chorando.
-Parece que não tá tão superado, assim.
-Não, não tá, mesmo.
-Posso ir até aí? Você ainda mora no mesmo lugar, né?-
Não, você não pode. E, eu me mudei.
-E, trocou de carro, presumo?
-Não.
-Então, ainda mora no mesmo lugar. Será que pode abrir a porta, pra mim? Tô no celular.
Ficou muda, de repente. Como é que ele se atrevia? Que tivesse voltado, tudo bem. Ligou? -Legal, ligou. Agora, atravessar, sabe Deus quantos kilômetros, pra lhe visitar, após dois anos? Depois de tudo o que foi feito? Depois da dor que lhe causou?
-É o cúmulo!- pensou.
Abriu a porta.
O mesmo sorriso, a mesma voz. A mesma barba por fazer. Havia algo de diferente. Não pôde identificar, o quê, mas viu que havia. Mais que isso, sentiu que havia.
-Já aprendeu a cozinhar? Tô com fome! -Ele disse, invadindo a sala.
Ela simplesmente lhe deu passagem, pela porta. Ele entrou como sempre fizera. Como um furacão. Tinha essa capacidade incrível de encher o ambiente com sua presença. Olhou ao redor, percebeu uma foto sua, em um dos porta retratos dela. Pegou-o.
-Achei que tivesse se livrado de todas as minhas lembranças.
-Eu tentei.
Não apresentava mais a frieza anterior. A essa altura, tinha mandado todo o seu auto-controle às favas. Ele a abraçou, um abraço apertado, carinhoso. No início, ela tentou recuar, mas, como em todo relacionamento sem ponto final, ela cedeu. E, não cedeu apenas no abraço. Começou a chorar. Soluçava.
De repente, todo o seu passado estava ali. Lembrou-se de cada beijo, cada transa, o cheiro do suor, o gosto dos lábios. Lembrou-se de como se sentia segura em seu peito, e como ele a fizera feliz. Enquanto durou, ao menos.
-Por quê? Como é que você faz isso com alguém? Como é que você fez isso comigo? Eu te amei tanto, tanto..
-E, não ama mais?
-Não. Amo. Não. Droga!
-Sabe, meu bem.. Às vezes, fazemos escolhas das quais nos arrependemos. Ter te deixado foi uma delas. Não que eu tivesse outras opções, mas, de fato, foi a pior escolha.
-Você podia ter ficado. Podia ter sido menos covarde. Podia ter segurado minha mão, naquela maldita mesa de cirurgia, enquanto eu matava o filho que você não quis. Enquanto eu morria de medo e dor. Podia ter limpado as minhas lágrimas. Podia simplesmente ter ficado ao meu lado.
-Eu era tão novo...
-Não, não era. Você tinha, naquela época, a idade que eu tenho, agora. Eu estava tão feliz, era o filho que eu sempre sonhei, e, você não quis, eu cedi aos teus caprichos. e, você foi embora, e me deixou sozinha, sem meu filho, sem amor, sem saber o que fazer da minha vida. Parte de mim morreu, naquela mesa.
-Eu peço perdão, por isso.
Com o pedido de perdão, veio o abraço mais forte, o carinho há tanto desejado. Acordou, no dia seguinte, feliz, decepcionada, sentindo uma confusão tão grande de sentimentos, que chorou tudo o que havia segurado desde que ele se fora:
-Tenho algo pra te dizer.
-Diga.
-Depois que você se foi, eu me senti a pior pessoa do mundo. Resolvi, então, agir como a pior pessoa do mundo. Saí, por várias vezes, bebi demais, usei drogas, e transei com vários outros caras, entre eles, alguns dos teus amigos...
-Eu soube. O tempo todo, alguém me dizia o que você andava fazendo, e com quem...
-Tenho aids.
Depois de dois anos, contando, no calendário, cada um de seus dias, pôde ver, nos olhos dele, o sentimento que há tanto esperava: desamparo. Sentiu-se vingada. Por si, e por seu filho, que jazia, agora, num vidro, envolto em sua mortalha de formol.
PS: Por algum motivo, eu gostaria de ser mais franco comigo mesmo. E, gostaria de falar mais de mim, ao invés de inventar pessoas que me tragam a redenção.
segunda-feira, 20 de outubro de 2008
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